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Então é assim: só ontem vi e ouvi. Por várias razões não me dei ao trabalho de ver o video do Martim.
Ontem, quando via o Governo Sombra, RAP e João Miguel Tavares fizeram uma dramatização óptima do diálogo entre Martim Neves e Raquel Varela. Foi óptima a dramatização. E a prova é que fiquei logo "doente". Fui então ao youtube ver o célebre video. Confere. Irritação maior ainda. Não em relação ao Martim, que me parece ser um rapaz activo, desembaraçado, criativo, com uma auto estima bem acima da média para um adolescente. Um adolescente que, como referiu também RAP, teve a sorte de ter uns pais que puderam ajudá-lo monetariamente a por o seu sonho em marcha. E puderam porque, seguramente, não ganham o salário mínimo. E ainda bem.
A minha irritação, desilusão e sei lá mais o quê foi toda para as pessoas que se manifestaram acerca deste video (sim, que eu depois dei-me ao trabalho de ir pesquisar um pouquinho). E deparei-me com frases do género: boa Martim, dá-lhe rapaz e outras pérolas. A própria comunicação social tinha títulos como: rapaz de 16 anos destrói doutaramento de Raquel Varela, jovem de 16 anos humilha Raquel Varela e por aí fora.
Estas reacções mostram e confirmam a falta de formação /informação de muitos portugueses, que logo ali viram o rapazinho simples vencer o duelo com a "dótora" arrogante. Uau! Palmas! Não viram, nem perceberam, que, em último caso, a "dótora" estava ...... pasme-se a defendê-los enquanto trabalhadores.
O acidente que aconteceu há semanas numa fábrica do Bangladesh e que causou centenas de mortos veio confirmar aquilo que se sabe há muito tempo: para comprarmos roupa a preços baixos, há pessoas que vivem e trabalham em condições miseráveis. Pessoas que são escravizadas. Pessoas que ganham salários vergonhosos por dias e dias seguidos de trabalho. Pessoas que são exploradas desde que nascem até que morrem. É melhor isto do que estar desempregado? NÃO, NÃO É.
Martim Neves tem 16 anos e uma vida inteira à sua frente para perceber que existem umas "coisitas" muito importantes, sem as quais o ser humano não vive: dignidade, direitos, liberdade. As pessoas que ficaram radiantes com a resposta do rapaz não perceberam e temo que nunca venham a perceber. Pegando nas palavras de RAP, estas pessoas encarnam "o sonho do pensamento rústico-liberal: a verdade na boca da criança, o menino que faz ver à doutora, o bom senso prático a superiorizar-se ao saber académico." Este pensamento explica, em grande parte, a razão do actual governo continuar de pé, como explicou durante décadas a existência do salazarismo.
Cada povo tem o que merece.
Por mim, desejo o melhor para o negócio do Martim.
Com a Raquel Varela partilho, seguramente, o peso da consciência de comprar e utilizar produtos feitos à custa do sofrimento de milhares de pessoas. Mas isso não me retira o pensamento crítico.