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Autocarro.
Eu sentada num dos bancos.
Reparo num homem que se apoia numa bengala. Pernas com ligaduras. Reparo nele apenas pk alguém lhe ofereceu o lugar e ele recusou, agradecendo. Vai sair já na próxima paragem. E sai.
Regresso à semi consciência de quem viaja em tranporte público.
Lá do fundo da semi consciência, começo a ouvir alguém que fala ao telemóvel. É uma mulher. Ainda nova.
"Sim, ele saiu na paragem. Ó minha senhora, já lhe disse que o homem já não está no autocarro. Saiu na paragem. Deve estar lá ainda. Vocês deviam lá ir buscá-lo. Isto não pode ser. Ele tinhas as pernas todas inchadas. Ele tem ÉBOLA."
Todos os meus sentidos se concentram num só: ouvir, ouvir melhor. Se calhar percebi mal.
À minha volta as pessoas estão caladas. Olhares incrédulos. Três adolescentes não sabem se devem soltar aqueles risinhos típicos da sua idade.
A mulher vira-se agora para o interior do autocarro (do outro lado do telemóvel (112???) devem ter desligado, incrédulos também).
"Vocês não viram? Viram e não disseram nada. Não pode ser. Ele tinha as pernas todas inchadas. Já deve ter contagiado o autocarro todo com ébola. Ó senhor motorista, você nem o devia ter deixado entrar. Ele tinha os dedos dos pés todos a cair."
Uma das adolescentes diz: "Ó minha senhora isso é lepra!"
Revolta encorajada pela intervenção da miúda, grito: "Olhe, eu estou com tosse e com febre. Acha que devo sair na próxima paragem!?"
A mulher olha-me. Olhar alienado. "Espere aí que eu já lhe respondo."
E fala novamente ao telemóvel. Desta vez com alguém conhecido. "Tens que ter cuidado. Isto é muito grave. Já ontem mataram o cão em Espanha. Vamos morrer todos." Desliga.
Insiste agressivamente com a mulher sentada à sua frente. "Você viu que ele tinha as pernas todas inchadas e não fez nada. Não pode ser!"
Mais uma vez falo. "O homem tinha as pernas ligadas. E mesmo que estivessem inchadas seria razão para o pôr fora do autocarro? Já agora puxar de uma pistola e matá-lo, não?"
Mais uma vez aquele olhar alienado. E sem qualquer resposta.
À minha volta abanam-se cabeças. Levam-se indicadores à testa.
Tive medo, tive muito medo.
De atitudes destas. Não do ébola.
9 de Outubro de 2014
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